Cinco seres, cinco dias. No começo do mundo, Daniel Faria leva-nos no caminho enigmático dos primeiros homens. São breves fragmentos de um projeto que o poeta ainda revisitava nas vésperas da sua morte, um livro inédito de uma contenção exemplar e luminosa: «Em Sétimo Dia, os cinco homens repartem perspectivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana a partir da qual cada um se foi fazendo lugar.
Cada homem permanece em redor da raiz da sua condição, mesmo quando na enunciação das dúvidas, dores e amarguras se faz pressentir o rumor da mudança aguardada.» [Francisco Saraiva Fino, em «A raiz do corpo glorioso»]
DANIEL AUGUSTO DA CUNHA FARIA nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de Abril de 1971. Licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, Porto, e em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Colaborou nas revistas Atrium, Humanística, Via Spiritus e Limiar. A partir de 1990, e durante vários anos, esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses. Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o Auto da Barca do Inferno. De entre os seus escritos dispersos incluem-se á岹(1992), A casa dos ceifeiros (1993), Explicação das árvores e de outros animais(1998) e Homens que são como lugares mal situados (1998), tendo ainda publicado o ensaio “A vida e conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o ensino da Cruz (1999). Recebeu vários prémios literários relativos a inéditos de poesia e conto. Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.
Para mim, é simplesmente maravilhoso! Já emprestei e por isso não consigo citar, mas garanto que toda a poesia aqui contida é de uma enorme profundidade. Um dos cinco homens a que o autor deu voz foi amputado. Ficou sem um braço. As suas reflexões são as mais surpreendentes. Ficou para sempre gravada em mim a imagem do homem como árvore a quem podem cortar os galhos, a quem podem suprimir os seus componentes, mas que resiste. Que imagem poderosa essa, a da extração do que nos pode sobejar para sobrevivermos apenas da seiva da nossa existência terrena.
Aproxima-te. Preciso dos teus olhos acesos para não me despenhar no vazio. Para não ter frio.
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17.
É duro não ter ninguém que nos diga que deixamos um pouco da barba por desfazer. É duro não ter ninguém que nos tire um cisco do olho. Os olhos que estão sempre tão ameaçados. Por tudo o que se vê, pela ausência, pelo pó, pelo sono, pelos máximos do carro que nos aparece em frente, pelas próprias pestanas que nos defendem, pelo invisível, pela violência, pela nudez, pela beleza, pelo desastre, pela miopia. Sobretudo pela aparência. É preciso alguém que nos livre da ceguez.
"Aproxima-te. Preciso dos teus olhos acesos para não me despenhar no vazio. Para não ter frio."
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"Nunca atirei a pedra exacta para o lugar certo. E abri feridas em todas as direcções."
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"Mãe: sinto o nevoeiro denso das manhãs de transumância. Abeiro-me das margens, das pontes, de todas as coisas que ligam uma nascente ao seu fim. Esmola, orvalho, pão. Tudo isso me dão. Eu só quero a luz."
"Desde que me cortaram o braço que sinto que há um anjo muito forte que me liga ao voo."
"Punhas o indicador sobre os meus lábios quando chegávamos de noite e entrávamos em segredo. Hoje vejo que era em silêncio que avançávamos de mãos dadas no escuro."
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De vez em quando preciso de recolhimento: de distância, de afastamento, de silêncio - sobretudo de silêncio; o livro saiu precisamente no começo deste breve período e acompanhou-me no eremitério como se se tratasse de uma sombra.
"O equilíbrio do corpo está mais nas palavras do que na carne, está mais nos olhos do que nos músculos. O pensamento pode manter-nos de pé mesmo quando estamos no chão."
“Por que é que estou à chuva? Por que é que não entro se sei que a tua voz me chama? Chama-me mais alto, insistentemente. Bate nos vidros, quebra os vidros, vem buscar-me com as mãos mesmo cortadas. Porque eu procuro as mais fundas fontes.�
“Penso sem certezas que sensato é abrir a porta e deixar en-trar, pôr a mesa e guardar um lugar para quem vier. É acreditar no milagre. E sei, sem duvidar, que a espera, desde Ítaca, não se alimenta do que se faz, mas sobretudo do que se desfaz. Mas calar-se não foi um destecer.�
"Há depois o silêncio, sim. As suas grades. É por entre os seus ferros que eu sonho poder ver esconder-se ainda, e espero-as tanto, as tuas mãos. Os teus dedos encadeados nos meu libertar-me-iam."
"Nunca cumpras todas as promessas. É um modo muito triste de morrer." Voluntariamente incompleta esta narrativa singular. Entre Deus e o Homem, uma construcao inacabada. Sem criador. Sem criatura. Sem descanso.
Perder um amigo é menos importante do que perder o apetite. Quem não souber perder um amigo depressa perderá a vida. Mas o apetite é preciso mantê-lo."
"Nunca atirei a pedra exata para o lugar certo. E abri feridas em todas as direções". (p.56)
"Até hoje vivi mais das possibilidades do que das certezas, das esperanças mais do que das decisões. E agora que decidir é irremediável e o tempo para mim se fez lugar de angústia mais do que de redenção, invejo Moisés que, tendo vivido o tempo da promessa, morreu antes de chegar à terra prometida." (p.85)
"Desculpa ter erguido a voz. É que o alto está mais próximo do visível e eu precisava que tivesse ficado muito claro isto que acabei de te dizer. Que te encontrei no meio do caminho, e depois segui o desvio."
“Punhas o indicador sobre os meus lábios quando chegávamos de noite e entrávamos em segredo. Hoje vejo que era em silêncio que avançávamos de mãos dadas no escuro.�
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Há depois o silêncio, sim. As suas grades. É por entre os seus ferros que eu sonho poder ver esconder-se ainda, e espero-as tanto, as tuas mãos. Os teus dedos encadeados nos meus libertar-me-iam.�