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Inteligência Artificial 2041
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Kai-Fu Lee & Chen Qiufan - Inteligência Artificial 2041
Neste livro publicado em 2021, os autores em dez histórias elaboraram a sua antevisão do que poderá ser a organização da sociedade em 2041 e a sua relação com a I.A. em 2041. Cada um dos capítulos começa com uma história de ficção elaborada por Chen Qiufan, e a conspeção que a mesma encerra é complementada com um comentário de Kai-Fu Lee sobre os avanços tecnológicos e alterações na sociedade antevistas em cada ficção. Pretende ser e consegue-o, uma antevisão de um futuro próximo, o futuro de 2041.
Tendo sido escrito durante o período da pandemia, era inevitável que este tema e as suas consequências aqui estivessem refletidas, e a escolha de um futuro distante a vinte anos foi a opção por os autores acharem que tempos mais distantes não poderiam ser previstos com segurança, o que os responsabiliza ao acharem que o mundo que descrevem, não é apenas uma possibilidade, mas uma realidade que anteveem. Ficou o repto. A escolha de 2041 foi uma opção ainda por pretenderem os autores fugirem à antevisão mais ou menos catastrofista de Ray Kurzweil - 2045.
Trata-se de um texto bem escrito, de leitura fácil. Uma boa ideia e bem executada, pelo menos na forma. Já quanto ao conteúdo fico dividido. Se por um lado lhe reconheço uma visão panfletária do mundo “idílico� que anunciam, por outro lado encontro, e muito em particular no capítulo onde são abordadas, implicações da I.A. no mundo do trabalho aterradoras e que nao podem deixar de ser consideradas.
Os autores anteveem um mundo em 2041, um mundo centrado na I.A., mas um mundo que parece quase exclusivamente composto por I.A., em que tudo parece um jogo. Acham mesmo que vai ser assim? Em 2041 o planeta terá mais de nove biliões, e estima-se que antes do final do século os 10 biliões devem ser ultrapassados. Como vai viver esta população? Como vão ser supridas os vários patamares de hierarquia da escala de Maslow. O que se vai passar com as necessidades básicas de comida, água, abrigo, ou as de segurança, como proteção, emprego, saúde e propriedade. Se quanto a estas tenho muitas dúvidas do que anteveem os autores, já quanto às necessidade eudemónicas de amor, pertença, estima e auto-realização me parece que aquilo que é antevisto pelos autores é mais claro, é distópico e recuso.
Apesar de chamarem a esse mundo de 2041, um mundo de plenitude, tal como o descrevem na última história “Sonhar com a plenitude�, trata-se de um mundo distópico, não muito diferente do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, onde o oráculo, a estimulação química e as castas, são substituídos pela I.A. Um mundo onde jovens substituem o contacto físico por simulacros de amor (espiritual e físico) em contexto cibernético (durante 3 anos), parece-me uma aberração. Claro que o descrito na história 4 (Amor sem contacto) poderia apenas ser um caso patológico, mas o contexto em que o mesmo é descrito parece-me mais ser uma paranoia na sociedade que estamos a construir. Uma sociedade unida por múltiplos “devices� e “gadgets�, mas em que as pessoas nunca estiveram tão afastadas umas das outras. Aliás, já hoje podemos antever esse mundo quando entramos num restaurante e a maioria dos “convivas� está “agarrado� ao ecrã do seu smartphone. Ver um grupo de três ou quatro a interagirem dessa forma é confrangedor. A realidade é essa, mas o que parece condenável é que os autores a vejam como inevitável e boa.
Quando o par de namorados Chen Nan e Garcia decidem ter um encontro físico, o primeiro encontro físico ao fim de 3 anos de “namoro� virtual, o que é escrito pelo autor é que o par de namorados decide ter um encontro “offline�. Offline! Francamente! Quem assim se exprime é porque acha que “offline� é estranho e será o extraordinário!
Mas se a sociedade anunciada vai ser uma sociedade de membros isolados, deprimidos, sem pertença e sem capacidade de se sentirem úteis (exceção para aqueles que trabalharam na sua construção e manutenção da sociedade de I.A., e que será exclusiva por nunca abarcar dez biliões), mas que curiosamente podem ter uma monitorização persecutória do seu estado de saúde. Através de múltiplos sensores é possível monitorizar num indivíduo todos os seus aportes e emissões e com essa informação efectuar um relatório. Até aqui nada de extraordinário, agora partilhar esse relatório com não médicos é que ma parece um absurdo. Para que diabo Chen Nan queria saber pormenores das fezes e de outros líquido biológicos do seu namorado (virtual até à data)?
Bom, talvez seja esse o mundo que estamos a contruir com a I.A., um mundo que nos controla até nos mais íntimos pormenores, um mundo que relega para as calendas a liberdade individual e os valores democráticos. É um mundo que por exemplo para calcular o risco de um seguro monitoriza e interfere de forma intrusiva com a nossa liberdade. Deixa de ser um seguro e passa a ser um certificado garantido, em que os que estão do lado dos bons augúrios em nada se solidarizam com os menos afortunados.
Os autores descrevem para 2041 um mundo de plenitude onde todos são felizes e realizados. Não me parece que esse seja o que o futuro nos reserva. Antevejo antes um mundo de elites, um mundo onde uma minoria tem acesso á plenitude anunciada, e uma maioria não se desviará muito do mundo dos subúrbios de 1984, descrito por Orwell, ou do mundo de "Elysium" passado para os écrans em 2013 por Neill Blomkamp.
Mas este mundo, autocrático e hipervigilante já é uma realidade nos regimes autocratas. Um mundo que a troco de uma pertença segurança tem os seus cidadãos a abdicarem das sua liberdades e opções. Gostaria muito que assim não fosse, mas seja pelo desequilíbrio entre recursos e pressão do crescimento, seja pela intrusão da I.A., lamentavelmente será o mundo que vamos deixar para as gerações vindouras.
Quanto às várias opções técnicas descritas ao longo dos seus dez capítulos, não tenho qualquer opinião sobre as mesmas. E dentro da minha ignorância sobre essas matérias, não pude deixar de ficar deslumbrado com os “encantamentos� aqui anunciados, todos eles pomposamente apresentados com uma elegância avassaladora e uma vantagem inquestionável. Tanta maravilha só poderia ter rótulos num léxico anglo-saxónico. Uma terminologia que à primeira tentativa soa estranha, mas que como um vírus rapidamente se dissemina e adere ao nosso discurso diário.
Se às características técnicas da I.A. não tenho habilitações para me pronunciar, já quanto ao que se passou com o período pandémico da COVID-19, acho que os autores andaram muito mal. Apresentam na história 4 (Amor sem contacto) a realidade de dois países durante uma pandemia por coronavírus. Um coronavírus com variantes recorrentes, uma delas a ter origem no ártico em resultado do degelo e libertação de material orgânico. É claro que esta história é inspirada nos acontecimentos que ocorreram entre 2019 e 2021, e os países citados pelo autor ficcionista foram a China e o Brasil. Só que que a China aqui apresentada é a de Xangai, cuja realidade é apresentada como o exemplo perfeito da eficácia de controlo sanitário. Um mundo com uma articulação perfeita entre a segurança dos cidadãos, a monitorização do seu estado de saúde e o controlo epidemiológico de tal forma perfeito e eficaz que deixaria “de água na boca� um qualquer Joseph ou um não menos notável “Big Brother�. Do outro lado apresenta-nos um Brasil, cheio de carências, um Brasil de gangues, um Brasil onde se morria “como tordos�.
Como referi, este cenário está ficcionado para uma pandemia em 2041, mas as circunstâncias em que é descrita, bem como os países escolhidos parece-me corresponde à lavagem de um deles e a uma ultrajante difamação do outro. Nem na China a eficácia se aproximou do que os autores referem, nem no Brasil os casos tiveram o impacto propagado. Para além desta pandemia ter tido origem na China, algo pelo qual ainda não ouvi as autoridades chinesas darem qualquer explicação ou pedido de arrependimento, os seus serviços de saúde estiveram longe da eficácia propalada. Tiveram uma política publica de COVID zero, como se isso alguma vez fosse possível, ou até útil, e a única eficácia que demonstraram foi a de levantarem hospitais de campanha em tempo record e tudo fecharem, colocando as populações encerradas num estado marcial. Esta foi a realidade que se viveu, e se apenas em finais de 2022 as restrições foram levantadas, não foi porque a política de COVID zero tivesse sido desconsiderada, foi antes porque a pressão das populações ameaçava a autoridade. Branquear esta realidade e dar-nos um cenário em que tudo foi idílico é reforçar a limitação das liberdades individuais. É atraiçoar a democracia e tudo em que acredito.
A política de COVID zero para além de reforçar a autocracia e minar os princípios democráticos, estava ainda errada nos seus princípios. Os vírus sem hospedeiro intermédio tem mutações que por mecanismos de seleção natural evoluem sempre no sentido das variantes de menor morbilidade e mais infeciosas terem vantagem e por isso serem predominantes. Na pandemia pelo SARS-Cov-2 as vacinas nunca acompanharam as estirpes predominantes e a eficácia propalada pelas farmacêuticas (quase todas ligeiramente abaixo dos 100%), foi no mínimo enganosa para não dizer dolosa. As estirpes do coronavírus foram sendo progressivamente menos agressivas (mesmo nos países que como em África tiveram baixos níveis de vacinação), porque o vírus ao circular ia favorecer o aparecimento de estirpes cada vez menos agressivas. A política COVID zero estava errada. Os Suecos foram os únicos que estiveram acertados.
Quanto á descrição que os autores fazem do Brasil em relação ao COVID-19, é no mínimo fruto de uma difamação que é propalada pelo mundo ocidental que com isso pretendia condenar as políticas, ou a falta delas de Jair Bolsonaro, e demonstrarem junto das respectivas populações que eram governos interventivos, audazes (favoráveis ao Lockdown), e por isso merecedores da confiança das suas populações. Uma verdade é o que podemos fazer com uma mentira. O Brasil apareceu assim no mundo ocidental com aquelas imagens de caos e mortandade sem controlo. Foi assim que os média ocidentais apresentaram o Brasil, mas quando comparamos os números de prevalência ou de mortalidade, estes não diferem muito da média, estando bem melhores que nações como Portugal que assumiram uma política restritiva muito mais agressiva. Neste capítulo os autores deviam sido muito mais cuidadosos e menos alinhados com o mainstream e o politicamente correto do ocidente.
Um outro aspecto em que o livro me chamou a atenção, foi a disrupção que a I.A. vai implicar no mundo do trabalho.
É habitual ouvirmos os “devotos� da I.A. sugerirem que esta nos vai trazer um mundo de oportunidades e que o engenho humano rapidamente vai encontrar o caminho do equilíbrio. Dizem estes evangelizadores que o mesmo se passou durante a revolução industrial do século XIX e mais tarde durante a utilização da eletricidade e combustíveis fósseis. Esquecem-se contudo estes arautos que este processo demorou quase dois séculos a disseminar-se pelo planeta. Quando introduziu a disrupção nos postos de trabalho, esta atingiu menos de 5% da população mundial, levou a uma disponibilização bens e permitiu que a população mundial crescesse 30% em cinquenta anos. Ninguém tem dúvidas que no final do século XIX se viva melhor que no final do século anterior.
A revolução da I.A. não tem nada de semelhante. Esta vai ser rápida, global, disruptiva e vai atingir mais de 80% da população trabalhadora. Vai criar uma sociedade fraturada numa classe de plutocratas e nos restantes. Muitos dos “devotos� veem nesta nova sociedade um mundo muito à semelhança do “Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley�, mas temo que o que se anuncia não difira muito do mundo do filme “Elysium" de 2013 e realizado por Neill Blomkamp. Neste mundo, a humanidade vai estar separada, numa “casta� de dirigentes e plutocratas e no grosso da população mundial que não vai diferir do lumpemproletariado dos subúrbios do século XIX.
Será que é este o mundo que estamos a construir? Numa fase inicial não tenho muitas dúvidas, que pelo menos em alguns países, é para aí que se encaminham. Aí chegados, as convulsões sociais vão ser tremendas e seguramente o que irá sucumbir será a própria democracia. Persistindo ou não, as pessoas vão-se manifestar e exigir que as necessidades mínimas de acesso a água, alimento e segurança sejam fornecidas. Aqui chegados as democracias não vão resistir, e as sociedades que ainda não dominadas por autocracias vão rapidamente passar a está-lo.
Num mundo de 9 biliões de humanos, que são as estimativas para o futuro aqui previsto, não é possível introduzir-se uma convulsão da magnitude da que a I.A. anuncia sem por em causa a democracia. E sobre isto os autores foram omissos. Não deixa de ser curioso que sendo ambos os autores de origem e residentes em território chinês, tenham condenado liminarmente o rendimento básico universal (RBU) como uma forma de minimizar assimetrias e dar a todos uma possibilidade de sobrevivência. De sobrevivência, não de dignidade. Contra este RBU sugerem vagamente que a sua implementação vai induzir crispação na sociedade, não introduz incentivos para que as pessoas melhorem a sua situação, e vai formar uma sociedade de deprimidos, com vida destruturada e sem objectivos. Por anteverem estas consequências nefastas, os autores acham que rapidamente vai ser abandonada. E após o abandono do RBU, apontam para dois caminhos que não parecem, são ridículos!
No primeiro destes apontam para a criação de trabalho virtual, como um jogo, onde os participantes são remunerados, gratificados, promovidos, conforme atingem objectivos que lhes são colocados pela I.A., o seu empregador! Sinceramente!
No outro caminho, sugerem que através de reaprendizagem, recalibragem e renascimento, se possam encontrar novos empregos para os que os vão perder. Para os 9 biliões de seres humanos? Onde estão esses empregos? A esta questão os autores sugerem que se deve procurar empregos em que tenham como atributos a inovação, a criatividade, o contacto humano e a empatia. Tudo áreas em que humano não virtual (curiosa esta expressão. Diz tudo o que vai no espírito dos autores) tem vantagem sobre o virtual! Esta posição para além de ridícula, são apenas adjectivos isolados, não vejo como possa satisfazer 9 biliões de candidatos. E se isto não bastasse, igualmente não vejo como autocracias vão subsidiar inovação, criatividade ou empatia aos seus cidadãos. Não bate certo.
Igualmente não bate certo a introdução maciça da I.A. no mercado de trabalho. A ruptura vai levar ao desemprego de biliões com que fundamento? Para redução dos custos? Não é verdade que os custos com o trabalho seja a principal parcela do preço final. Antes dos custos com a mão de obra vêm os impostos, o custo das matérias primas e energia, o lucro do investidor. Só depois de satisfeitas todas as parcelas prioritárias é que a última é encarada. Mas mesmo que este não seja um motivo válido para o decisor, a possibilidade de laboração em continuum e sem preocupações com condições de trabalho, greves, revindicações e absentismo, etc, podem torná-la uma opção e uma escolha que rapidamente passará a tendência. Daí para regra é só um pequeno passo. Chegados aqui, as empresas vão aumentar a produção, vão produzir mais com menores custos, vão ter produtos inovadores, competitivos e muito atrativos. Mas para quem? A I.A. não consome. Os potencias consumidores quem são. Os plutocratas? Seguramente que o lumpemproletariado não vai ser. Os que sobrevivem com RBU também não me parece que tenham oportunidade para consumo. Os entregues ao trabalho virtual, para além de terem o RBU como rendimento, vão estar ocupados no “vício� e nas suas gratificações virtuais. Não é possível descrever uma sociedade onde humanos se arriscam a ser redundantes sem se encarar de frente esse problema, e isso é algo que os autores não fazem ao longo desta sua antevisão de 2041.
Neste livro publicado em 2021, os autores em dez histórias elaboraram a sua antevisão do que poderá ser a organização da sociedade em 2041 e a sua relação com a I.A. em 2041. Cada um dos capítulos começa com uma história de ficção elaborada por Chen Qiufan, e a conspeção que a mesma encerra é complementada com um comentário de Kai-Fu Lee sobre os avanços tecnológicos e alterações na sociedade antevistas em cada ficção. Pretende ser e consegue-o, uma antevisão de um futuro próximo, o futuro de 2041.
Tendo sido escrito durante o período da pandemia, era inevitável que este tema e as suas consequências aqui estivessem refletidas, e a escolha de um futuro distante a vinte anos foi a opção por os autores acharem que tempos mais distantes não poderiam ser previstos com segurança, o que os responsabiliza ao acharem que o mundo que descrevem, não é apenas uma possibilidade, mas uma realidade que anteveem. Ficou o repto. A escolha de 2041 foi uma opção ainda por pretenderem os autores fugirem à antevisão mais ou menos catastrofista de Ray Kurzweil - 2045.
Trata-se de um texto bem escrito, de leitura fácil. Uma boa ideia e bem executada, pelo menos na forma. Já quanto ao conteúdo fico dividido. Se por um lado lhe reconheço uma visão panfletária do mundo “idílico� que anunciam, por outro lado encontro, e muito em particular no capítulo onde são abordadas, implicações da I.A. no mundo do trabalho aterradoras e que nao podem deixar de ser consideradas.
Os autores anteveem um mundo em 2041, um mundo centrado na I.A., mas um mundo que parece quase exclusivamente composto por I.A., em que tudo parece um jogo. Acham mesmo que vai ser assim? Em 2041 o planeta terá mais de nove biliões, e estima-se que antes do final do século os 10 biliões devem ser ultrapassados. Como vai viver esta população? Como vão ser supridas os vários patamares de hierarquia da escala de Maslow. O que se vai passar com as necessidades básicas de comida, água, abrigo, ou as de segurança, como proteção, emprego, saúde e propriedade. Se quanto a estas tenho muitas dúvidas do que anteveem os autores, já quanto às necessidade eudemónicas de amor, pertença, estima e auto-realização me parece que aquilo que é antevisto pelos autores é mais claro, é distópico e recuso.
Apesar de chamarem a esse mundo de 2041, um mundo de plenitude, tal como o descrevem na última história “Sonhar com a plenitude�, trata-se de um mundo distópico, não muito diferente do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, onde o oráculo, a estimulação química e as castas, são substituídos pela I.A. Um mundo onde jovens substituem o contacto físico por simulacros de amor (espiritual e físico) em contexto cibernético (durante 3 anos), parece-me uma aberração. Claro que o descrito na história 4 (Amor sem contacto) poderia apenas ser um caso patológico, mas o contexto em que o mesmo é descrito parece-me mais ser uma paranoia na sociedade que estamos a construir. Uma sociedade unida por múltiplos “devices� e “gadgets�, mas em que as pessoas nunca estiveram tão afastadas umas das outras. Aliás, já hoje podemos antever esse mundo quando entramos num restaurante e a maioria dos “convivas� está “agarrado� ao ecrã do seu smartphone. Ver um grupo de três ou quatro a interagirem dessa forma é confrangedor. A realidade é essa, mas o que parece condenável é que os autores a vejam como inevitável e boa.
Quando o par de namorados Chen Nan e Garcia decidem ter um encontro físico, o primeiro encontro físico ao fim de 3 anos de “namoro� virtual, o que é escrito pelo autor é que o par de namorados decide ter um encontro “offline�. Offline! Francamente! Quem assim se exprime é porque acha que “offline� é estranho e será o extraordinário!
Mas se a sociedade anunciada vai ser uma sociedade de membros isolados, deprimidos, sem pertença e sem capacidade de se sentirem úteis (exceção para aqueles que trabalharam na sua construção e manutenção da sociedade de I.A., e que será exclusiva por nunca abarcar dez biliões), mas que curiosamente podem ter uma monitorização persecutória do seu estado de saúde. Através de múltiplos sensores é possível monitorizar num indivíduo todos os seus aportes e emissões e com essa informação efectuar um relatório. Até aqui nada de extraordinário, agora partilhar esse relatório com não médicos é que ma parece um absurdo. Para que diabo Chen Nan queria saber pormenores das fezes e de outros líquido biológicos do seu namorado (virtual até à data)?
Bom, talvez seja esse o mundo que estamos a contruir com a I.A., um mundo que nos controla até nos mais íntimos pormenores, um mundo que relega para as calendas a liberdade individual e os valores democráticos. É um mundo que por exemplo para calcular o risco de um seguro monitoriza e interfere de forma intrusiva com a nossa liberdade. Deixa de ser um seguro e passa a ser um certificado garantido, em que os que estão do lado dos bons augúrios em nada se solidarizam com os menos afortunados.
Os autores descrevem para 2041 um mundo de plenitude onde todos são felizes e realizados. Não me parece que esse seja o que o futuro nos reserva. Antevejo antes um mundo de elites, um mundo onde uma minoria tem acesso á plenitude anunciada, e uma maioria não se desviará muito do mundo dos subúrbios de 1984, descrito por Orwell, ou do mundo de "Elysium" passado para os écrans em 2013 por Neill Blomkamp.
Mas este mundo, autocrático e hipervigilante já é uma realidade nos regimes autocratas. Um mundo que a troco de uma pertença segurança tem os seus cidadãos a abdicarem das sua liberdades e opções. Gostaria muito que assim não fosse, mas seja pelo desequilíbrio entre recursos e pressão do crescimento, seja pela intrusão da I.A., lamentavelmente será o mundo que vamos deixar para as gerações vindouras.
Quanto às várias opções técnicas descritas ao longo dos seus dez capítulos, não tenho qualquer opinião sobre as mesmas. E dentro da minha ignorância sobre essas matérias, não pude deixar de ficar deslumbrado com os “encantamentos� aqui anunciados, todos eles pomposamente apresentados com uma elegância avassaladora e uma vantagem inquestionável. Tanta maravilha só poderia ter rótulos num léxico anglo-saxónico. Uma terminologia que à primeira tentativa soa estranha, mas que como um vírus rapidamente se dissemina e adere ao nosso discurso diário.
Se às características técnicas da I.A. não tenho habilitações para me pronunciar, já quanto ao que se passou com o período pandémico da COVID-19, acho que os autores andaram muito mal. Apresentam na história 4 (Amor sem contacto) a realidade de dois países durante uma pandemia por coronavírus. Um coronavírus com variantes recorrentes, uma delas a ter origem no ártico em resultado do degelo e libertação de material orgânico. É claro que esta história é inspirada nos acontecimentos que ocorreram entre 2019 e 2021, e os países citados pelo autor ficcionista foram a China e o Brasil. Só que que a China aqui apresentada é a de Xangai, cuja realidade é apresentada como o exemplo perfeito da eficácia de controlo sanitário. Um mundo com uma articulação perfeita entre a segurança dos cidadãos, a monitorização do seu estado de saúde e o controlo epidemiológico de tal forma perfeito e eficaz que deixaria “de água na boca� um qualquer Joseph ou um não menos notável “Big Brother�. Do outro lado apresenta-nos um Brasil, cheio de carências, um Brasil de gangues, um Brasil onde se morria “como tordos�.
Como referi, este cenário está ficcionado para uma pandemia em 2041, mas as circunstâncias em que é descrita, bem como os países escolhidos parece-me corresponde à lavagem de um deles e a uma ultrajante difamação do outro. Nem na China a eficácia se aproximou do que os autores referem, nem no Brasil os casos tiveram o impacto propagado. Para além desta pandemia ter tido origem na China, algo pelo qual ainda não ouvi as autoridades chinesas darem qualquer explicação ou pedido de arrependimento, os seus serviços de saúde estiveram longe da eficácia propalada. Tiveram uma política publica de COVID zero, como se isso alguma vez fosse possível, ou até útil, e a única eficácia que demonstraram foi a de levantarem hospitais de campanha em tempo record e tudo fecharem, colocando as populações encerradas num estado marcial. Esta foi a realidade que se viveu, e se apenas em finais de 2022 as restrições foram levantadas, não foi porque a política de COVID zero tivesse sido desconsiderada, foi antes porque a pressão das populações ameaçava a autoridade. Branquear esta realidade e dar-nos um cenário em que tudo foi idílico é reforçar a limitação das liberdades individuais. É atraiçoar a democracia e tudo em que acredito.
A política de COVID zero para além de reforçar a autocracia e minar os princípios democráticos, estava ainda errada nos seus princípios. Os vírus sem hospedeiro intermédio tem mutações que por mecanismos de seleção natural evoluem sempre no sentido das variantes de menor morbilidade e mais infeciosas terem vantagem e por isso serem predominantes. Na pandemia pelo SARS-Cov-2 as vacinas nunca acompanharam as estirpes predominantes e a eficácia propalada pelas farmacêuticas (quase todas ligeiramente abaixo dos 100%), foi no mínimo enganosa para não dizer dolosa. As estirpes do coronavírus foram sendo progressivamente menos agressivas (mesmo nos países que como em África tiveram baixos níveis de vacinação), porque o vírus ao circular ia favorecer o aparecimento de estirpes cada vez menos agressivas. A política COVID zero estava errada. Os Suecos foram os únicos que estiveram acertados.
Quanto á descrição que os autores fazem do Brasil em relação ao COVID-19, é no mínimo fruto de uma difamação que é propalada pelo mundo ocidental que com isso pretendia condenar as políticas, ou a falta delas de Jair Bolsonaro, e demonstrarem junto das respectivas populações que eram governos interventivos, audazes (favoráveis ao Lockdown), e por isso merecedores da confiança das suas populações. Uma verdade é o que podemos fazer com uma mentira. O Brasil apareceu assim no mundo ocidental com aquelas imagens de caos e mortandade sem controlo. Foi assim que os média ocidentais apresentaram o Brasil, mas quando comparamos os números de prevalência ou de mortalidade, estes não diferem muito da média, estando bem melhores que nações como Portugal que assumiram uma política restritiva muito mais agressiva. Neste capítulo os autores deviam sido muito mais cuidadosos e menos alinhados com o mainstream e o politicamente correto do ocidente.
Um outro aspecto em que o livro me chamou a atenção, foi a disrupção que a I.A. vai implicar no mundo do trabalho.
É habitual ouvirmos os “devotos� da I.A. sugerirem que esta nos vai trazer um mundo de oportunidades e que o engenho humano rapidamente vai encontrar o caminho do equilíbrio. Dizem estes evangelizadores que o mesmo se passou durante a revolução industrial do século XIX e mais tarde durante a utilização da eletricidade e combustíveis fósseis. Esquecem-se contudo estes arautos que este processo demorou quase dois séculos a disseminar-se pelo planeta. Quando introduziu a disrupção nos postos de trabalho, esta atingiu menos de 5% da população mundial, levou a uma disponibilização bens e permitiu que a população mundial crescesse 30% em cinquenta anos. Ninguém tem dúvidas que no final do século XIX se viva melhor que no final do século anterior.
A revolução da I.A. não tem nada de semelhante. Esta vai ser rápida, global, disruptiva e vai atingir mais de 80% da população trabalhadora. Vai criar uma sociedade fraturada numa classe de plutocratas e nos restantes. Muitos dos “devotos� veem nesta nova sociedade um mundo muito à semelhança do “Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley�, mas temo que o que se anuncia não difira muito do mundo do filme “Elysium" de 2013 e realizado por Neill Blomkamp. Neste mundo, a humanidade vai estar separada, numa “casta� de dirigentes e plutocratas e no grosso da população mundial que não vai diferir do lumpemproletariado dos subúrbios do século XIX.
Será que é este o mundo que estamos a construir? Numa fase inicial não tenho muitas dúvidas, que pelo menos em alguns países, é para aí que se encaminham. Aí chegados, as convulsões sociais vão ser tremendas e seguramente o que irá sucumbir será a própria democracia. Persistindo ou não, as pessoas vão-se manifestar e exigir que as necessidades mínimas de acesso a água, alimento e segurança sejam fornecidas. Aqui chegados as democracias não vão resistir, e as sociedades que ainda não dominadas por autocracias vão rapidamente passar a está-lo.
Num mundo de 9 biliões de humanos, que são as estimativas para o futuro aqui previsto, não é possível introduzir-se uma convulsão da magnitude da que a I.A. anuncia sem por em causa a democracia. E sobre isto os autores foram omissos. Não deixa de ser curioso que sendo ambos os autores de origem e residentes em território chinês, tenham condenado liminarmente o rendimento básico universal (RBU) como uma forma de minimizar assimetrias e dar a todos uma possibilidade de sobrevivência. De sobrevivência, não de dignidade. Contra este RBU sugerem vagamente que a sua implementação vai induzir crispação na sociedade, não introduz incentivos para que as pessoas melhorem a sua situação, e vai formar uma sociedade de deprimidos, com vida destruturada e sem objectivos. Por anteverem estas consequências nefastas, os autores acham que rapidamente vai ser abandonada. E após o abandono do RBU, apontam para dois caminhos que não parecem, são ridículos!
No primeiro destes apontam para a criação de trabalho virtual, como um jogo, onde os participantes são remunerados, gratificados, promovidos, conforme atingem objectivos que lhes são colocados pela I.A., o seu empregador! Sinceramente!
No outro caminho, sugerem que através de reaprendizagem, recalibragem e renascimento, se possam encontrar novos empregos para os que os vão perder. Para os 9 biliões de seres humanos? Onde estão esses empregos? A esta questão os autores sugerem que se deve procurar empregos em que tenham como atributos a inovação, a criatividade, o contacto humano e a empatia. Tudo áreas em que humano não virtual (curiosa esta expressão. Diz tudo o que vai no espírito dos autores) tem vantagem sobre o virtual! Esta posição para além de ridícula, são apenas adjectivos isolados, não vejo como possa satisfazer 9 biliões de candidatos. E se isto não bastasse, igualmente não vejo como autocracias vão subsidiar inovação, criatividade ou empatia aos seus cidadãos. Não bate certo.
Igualmente não bate certo a introdução maciça da I.A. no mercado de trabalho. A ruptura vai levar ao desemprego de biliões com que fundamento? Para redução dos custos? Não é verdade que os custos com o trabalho seja a principal parcela do preço final. Antes dos custos com a mão de obra vêm os impostos, o custo das matérias primas e energia, o lucro do investidor. Só depois de satisfeitas todas as parcelas prioritárias é que a última é encarada. Mas mesmo que este não seja um motivo válido para o decisor, a possibilidade de laboração em continuum e sem preocupações com condições de trabalho, greves, revindicações e absentismo, etc, podem torná-la uma opção e uma escolha que rapidamente passará a tendência. Daí para regra é só um pequeno passo. Chegados aqui, as empresas vão aumentar a produção, vão produzir mais com menores custos, vão ter produtos inovadores, competitivos e muito atrativos. Mas para quem? A I.A. não consome. Os potencias consumidores quem são. Os plutocratas? Seguramente que o lumpemproletariado não vai ser. Os que sobrevivem com RBU também não me parece que tenham oportunidade para consumo. Os entregues ao trabalho virtual, para além de terem o RBU como rendimento, vão estar ocupados no “vício� e nas suas gratificações virtuais. Não é possível descrever uma sociedade onde humanos se arriscam a ser redundantes sem se encarar de frente esse problema, e isso é algo que os autores não fazem ao longo desta sua antevisão de 2041.
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De nada, J. Foi um prazer ler a sua resenha
É claro que uma caricatura é sempre um exagero e� obviamente que muito do descrito não será concretizado. Porém, não deixa de ser um alerta para um presente minado por comportamentos anómalos.

A IA é um ponto de partida para conversas sobre desinformação e deep fakes.
Matrix de 1999 aborda muito bem está temática.
Na sociedade futura a IA o que pode significar?
O que pode significar numas eleições democráticas? E para os direitos humanos e as liberdades civis?
ChatGPT e os geradores de imagens irão fabricar conteúdos culturais que parecem reais, mas que podem estar totalmente errados ou serem mentirosos.
Irá ser um mundo ainda mais desafiador para sociedades democráticas.
Talvez esta caricatura do futuro seja um alerta para algumas das reais anomalias do presente?!
Excelente resenha