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Trilogia
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Começo pela adenda, que é como quem diz, pelo fim, pelo não essencial, e por dizer que a razão para ter pegado neste livro agora foi uma só: e-mails. A catrefada de e-mails que recebi no espaço de três/quatro dias com promoções, descontos e convites à compra da obra de Fosse, o mais recente Nobel. Acedi. Não a comprar, que ainda tenho alguns aqui por casa, mas a ler mais qualquer coisa do senhor. Pelo menos passo por ser uma leitora na moda (que não sou, de todo).
(...)o pai sentou-se e sacou do violino, afinou-o e tocou alguns acordes, e a seguir tirou uma garrafa de dentro do estojo e bebeu um bom trago e depois tocou um pouco mais, cuidadosamente, como se estivesse à procura de um caminho, e depois o pai Sigvald passou a garrafa a Asle e disse-lhe que bebesse um trago e Asle bebeu e em seguida passou-lhe o violino e disse-lhe que aquecesse um pouco o violino e que aquecesse também os dedos, tocava-se sempre melhor seguindo este ritual, em que uma pessoa ia tocando devagar e cada vez melhor, quase desde o nada e sempre para melhor, desde o nada e até algo grandioso, disse ele e então Asle sentou-se e tentou exceder-se a si próprio a tocar quase desde o nada, começou a tocar quase cá no fundo e depois, lentamente e tão baixo quanto podia, foi tocando cada vez melhor...
Fosse é um escritor quase simbolista para quem religião e espiritualidade são duas faces de uma mesma moeda, e isso fica muito claro, novamente, neste livro. O enredo é praticamente inexistente, o tempo é um tempo com qualidade pastosa que se arrasta penosamente ao longo da narrativa, e as suas personagens são criaturas faltosas, pecaminosas e impuras em busca de uma redenção que não pode chegar senão sob a forma de expiação.
Claustrofóbico, repetitivo, hipnótico são adjetivos que, certeza das certezas, não ocorrem apenas a mim para descrever esta obra - na realidade, todas as três obras de Fosse que já li até hoje, as duas outras no reino da dramaturgia. Aliás, há vários elementos neste livro que competem para o tornar uma leitura de cadência lenta, opressiva e inerte (já descontando todos os elementos naturais que fazem parte da paisagem simbólica do autor): os longos e expressivos silêncios a que recorre com frequência obrigam a uma leitura à margem do texto, a uma interpretação semântica e um processo de descodificação lento e introspetivo. Agora que experimento drama e prosa, creio que a obra de Fosse se presta melhor ao primeiro género pois é esse que permite um trabalho mais apurado em torno desses silêncios e do tempo primordial que os acompanha. Por isso estas novelas têm uma cadência estranha para a maioria dos leitores - talvez também por ela o Nobel não esteja mal atribuído - já que a fórmula de Fosse obriga o leitor à contemplação e, consequentemente, à fabricação do seu próprio tempo num mundo imediato.
Mas Fosse obriga a mais do que isso. As suas criações alegóricas exigem um esforço interpretativo extra e algum conhecimento das temáticas que lhe são mais caras - mas não necessariamente aos leitores - o que às vezes desmoraliza um pouco. Todavia, o apelo existencialista, por ser relativamente universal, e os momentos poéticos de que o autor entremeia a narrativa acabam para fazer deste um livro bastante bem conseguido. Da minha parte, creio que o crescendo dramático funciona muitíssimo bem: as três novelas complementam-se a nível simbólico - pecado/expiação/perdão, se quiserem - e tomam traços mais emotivos e sublimes a caminho do final.
(...)Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha na direcção do mar e do céu, e vé Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente, e então ela ouve Asle dizer-lhe que está ali e que ela o pode ver ali, se ela olhar para o mar então perceberá que ele é o céu que ela vê sobre o mar, diz Asle e Alida olha e vê claramente Asle, mas não vê só Asle, também se vé a si própria no céu e Asle diz-lhe que também está presente dentro dela e do pequeno Sigvald e Alida diz-lhe que sim, que ele está e estará sempre e Alida pensa que agora Asle está vivo somente nela e no pequeno Sigvald, agora é ela que dá vida a Asle, pensa Alida e então ouve Asle dizer que eu estou aí, estou contigo, estarei sempre contigo, portanto não tenhas medo, eu acompanho-te, diz...
Não vale a pena explicar a história de Asle/ Alida; Olav/Asta; Ales/Alida pois ela tem tantos significados quantos se lhe queira encontrar. Creio que quem lê Fosse (por gosto - e, de certo, muito mais do que eu) não está muito preocupado com o fio condutor da história, não se distrai muito com a proximidade de nomes ou a repetição de lugares; com a abordagem psicológica, o monólogo interior ou o facto de os seus temas roçarem todos uma vertente mais devota. Dela se pode retirar muita coisa que fica implícita, e com ela se ganha uma coisa valiosíssima hoje: a capacidade de criar tempo para dedicar à leitura e a nós.
(...)o pai sentou-se e sacou do violino, afinou-o e tocou alguns acordes, e a seguir tirou uma garrafa de dentro do estojo e bebeu um bom trago e depois tocou um pouco mais, cuidadosamente, como se estivesse à procura de um caminho, e depois o pai Sigvald passou a garrafa a Asle e disse-lhe que bebesse um trago e Asle bebeu e em seguida passou-lhe o violino e disse-lhe que aquecesse um pouco o violino e que aquecesse também os dedos, tocava-se sempre melhor seguindo este ritual, em que uma pessoa ia tocando devagar e cada vez melhor, quase desde o nada e sempre para melhor, desde o nada e até algo grandioso, disse ele e então Asle sentou-se e tentou exceder-se a si próprio a tocar quase desde o nada, começou a tocar quase cá no fundo e depois, lentamente e tão baixo quanto podia, foi tocando cada vez melhor...
Fosse é um escritor quase simbolista para quem religião e espiritualidade são duas faces de uma mesma moeda, e isso fica muito claro, novamente, neste livro. O enredo é praticamente inexistente, o tempo é um tempo com qualidade pastosa que se arrasta penosamente ao longo da narrativa, e as suas personagens são criaturas faltosas, pecaminosas e impuras em busca de uma redenção que não pode chegar senão sob a forma de expiação.
Claustrofóbico, repetitivo, hipnótico são adjetivos que, certeza das certezas, não ocorrem apenas a mim para descrever esta obra - na realidade, todas as três obras de Fosse que já li até hoje, as duas outras no reino da dramaturgia. Aliás, há vários elementos neste livro que competem para o tornar uma leitura de cadência lenta, opressiva e inerte (já descontando todos os elementos naturais que fazem parte da paisagem simbólica do autor): os longos e expressivos silêncios a que recorre com frequência obrigam a uma leitura à margem do texto, a uma interpretação semântica e um processo de descodificação lento e introspetivo. Agora que experimento drama e prosa, creio que a obra de Fosse se presta melhor ao primeiro género pois é esse que permite um trabalho mais apurado em torno desses silêncios e do tempo primordial que os acompanha. Por isso estas novelas têm uma cadência estranha para a maioria dos leitores - talvez também por ela o Nobel não esteja mal atribuído - já que a fórmula de Fosse obriga o leitor à contemplação e, consequentemente, à fabricação do seu próprio tempo num mundo imediato.
Mas Fosse obriga a mais do que isso. As suas criações alegóricas exigem um esforço interpretativo extra e algum conhecimento das temáticas que lhe são mais caras - mas não necessariamente aos leitores - o que às vezes desmoraliza um pouco. Todavia, o apelo existencialista, por ser relativamente universal, e os momentos poéticos de que o autor entremeia a narrativa acabam para fazer deste um livro bastante bem conseguido. Da minha parte, creio que o crescendo dramático funciona muitíssimo bem: as três novelas complementam-se a nível simbólico - pecado/expiação/perdão, se quiserem - e tomam traços mais emotivos e sublimes a caminho do final.
(...)Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha na direcção do mar e do céu, e vé Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente, e então ela ouve Asle dizer-lhe que está ali e que ela o pode ver ali, se ela olhar para o mar então perceberá que ele é o céu que ela vê sobre o mar, diz Asle e Alida olha e vê claramente Asle, mas não vê só Asle, também se vé a si própria no céu e Asle diz-lhe que também está presente dentro dela e do pequeno Sigvald e Alida diz-lhe que sim, que ele está e estará sempre e Alida pensa que agora Asle está vivo somente nela e no pequeno Sigvald, agora é ela que dá vida a Asle, pensa Alida e então ouve Asle dizer que eu estou aí, estou contigo, estarei sempre contigo, portanto não tenhas medo, eu acompanho-te, diz...
Não vale a pena explicar a história de Asle/ Alida; Olav/Asta; Ales/Alida pois ela tem tantos significados quantos se lhe queira encontrar. Creio que quem lê Fosse (por gosto - e, de certo, muito mais do que eu) não está muito preocupado com o fio condutor da história, não se distrai muito com a proximidade de nomes ou a repetição de lugares; com a abordagem psicológica, o monólogo interior ou o facto de os seus temas roçarem todos uma vertente mais devota. Dela se pode retirar muita coisa que fica implícita, e com ela se ganha uma coisa valiosíssima hoje: a capacidade de criar tempo para dedicar à leitura e a nós.
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Eu gostei da prosa do senhor, mas passei ao lado do esforço interpretativo, talvez por isso não me tenha arrebatado."
Por uma vez, posso armar ao pingarelho, áپ! 🤣 Li uma coisa na moda... quem sou eu que já não me conheço?
Este Trilogia cresceu em mim ao longo da leitura. Começou ali no razoável, mas acabou por se encaixar, já do meio para o final, num sítio onde ficam os livros muito bons apesar de não serem favoritos.
Foi Assim é a obra de Fosse que, até agora, prefiro, e sendo a maluquinha do drama não admira. Mas muito dela está aqui e muito desta está lá, por isso...

Obrigada, Sofia. Sei que também estás a ler Fosse (e tenho esse livro aqui por casa), por isso ficarei à espera de ver o que achas dele. Pode ser que continue a acompanhar a tendência e leia outro Fosse este ano😉

Obrigada, Sofia. Sei que também estás a ler Fosse (e tenho esse livro aqui por casa), por isso ficarei à espera de ver o que achas dele. Pode ser que conti..."
Até agora recomendo o manhã e noite: o ambiente é melancólico e a escrita é sui generis, tem poucas pausas e deixa-nos de facto meio hipnotizados :)

Obrigada, Sofia. Sei que também estás a ler Fosse (e tenho esse livro aqui por casa), por isso ficarei à espera de ver o que achas dele. Pode..."
Fantástico. Espero que continue assim. Boa leitura, Sofia!

Maravilha, Ana, obrigada. Aqui está a altura perfeita para se repescar o Fosse da estante. Agora está na moda😁


Same here, David. Fosse is very demanding of the reader's time and availability in order to works with silence and meaning. I'm always exhausted after one of his books. Maybe that's why despite having enjoyed this Trilogy, I enjoy his plays even more: because I can share all my suffering with the actors...


Obrigada, áܻ徱.
O Fosse é um senhor que exige mais do que muitas vezes estamos dispostos a dar (falo por mim, pelo menos). Mas curioso, ainda ganhei um vale à conta de acertar no Nobel. Tinha cá um feeling... isto de ir acompanhando o Nobel é tipo corrida de cavalos: uma pessoa vai conhecendo a competição e ganhando experiência para topar vencedores 🤣
Eu gostei da prosa do senhor, mas passei ao lado do esforço interpretativo, talvez por isso não me tenha arrebatado.