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O Tempo esse grande escultor
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(...)a palavra humana chega[-nos] do passado aos tropeções, sucessivamente transformada por mal-entendidos, omissões e acrescentos, e só graças a poucos homens como Beda, o Contemplativo, ou Alfredo, o Homem de Acção, que tudo fizeram, por entre a desordem quase desesperada das coisas do mundo, para conservar e transmitir o que lhes parecia merecê-lo.
A leitura de O tempo esse Grande Escultor foi muito semelhante à experiência de frequentar uma daquelas gelatarias todas pipi das grandes capitais onde um gelado nunca é só um gelado, mas um misto de sabores com nomes difÃceis de pronunciar, fruta fresca e frutos secos, biscoitos, molhos doces e salgados, pipocas, glacé etc etc, que tanto podem ser servidos num copo, num cone, numa taça XS a XL, ou como acompanhamento de uma série de outras sobremesas como profiteroles e cheesecakes de encher o olho. O problema é que a meio do gelado já saciámos o estômago (e as artérias) de tanto açúcar que acabamos por deixar na mesa ainda uma meia dúzia de euros em desperdÃcio. Esta coletânea é precisamente aquele gelado que não resistimos a cobrir com mil e um extras de cor e textura, mas que, a dada altura, enjoa. Isto para dizer que uma mão cheia destes textos se lêem como verdadeiras pérolas, mas uma coletânea deles se torna um desafio (a vários nÃveis: desde a necessidade de bagagem intelectual para acompanhar, à capacidade de descodificar o seu hermetismo linguÃstico). E isto é menos um insulto a Yourcenar do que a mim. Porque, e apesar da densidade da sua escrita, a autora discorre sem hesitação sobre filosofia, religião, história e arte (o que muita inveja me faz), e se há algo que aqui deixe a desejar é talvez essa mesma multiplicidade de temas que dispersa a coletânea exigindo do leitor conhecimentos e interesses tão diversificados como aqueles que respeitam ao orientalismo, a ética, a espiritualidade ou a ecologia. Mas esta coletânea é também, e em grande medida, um conjunto de textos autoapologéticos que procuram justificar muitas das opções históricas, literárias e de estilo tomadas pela autora na composição de obras como Memórias de Adriano (cuja leitura não me decido a iniciar) ou A obra ao negro (cuja leitura não me decido a terminar). Nesse sentido, talvez para um estudioso ou admirador da sua obra, façam mais sentido.
Pessoalmente, deliciei-me com a tradução escorreita de Maria Helena Vaz que faz com que fluam as páginas mais poéticas de Yourcenar, e com o primeiro destes textos A propósito de algumas linhas de Beda, o Venerável (particularmente interessante para aqueles que se afadigam a tentar recuperar conexões históricas).
Unidos, sem dúvida, pelo tema do tempo - tempo cÃclico e tempo-memória -, estes artigos, outrora dispersos, formam uma unidade algo atÃpica em que a vertente académica, a pessoal, a ativista e umas série de outras vertentes da autora se dão a conhecer - à s vezes de forma estranhamente crÃtica perante a qualidade do feminino (Yourcenar não consentia num feminismo de oposição, acreditando que adversar mulheres e homens é alimentar a compartimentação social que oprime as primeiras).
Tudo isto acaba por fazer de O tempo esse Grande Escultor uma coletânea informe - como a maioria das coletâneas - em que uns textos se destacam de outros em função da preferência ou competência do leitor. Ainda assim, e apesar das dificuldades em acompanhar a agilidade e as escolhas da autora, sou capaz de apreciar a tentativa em que Yourcenar intenta quando procura criar ligações concêntricas entre os vários temas. Esse, para mim, é o ponto alto deste livro.
(...)o Inverno astronómico começa em Junho, como o Verão astronómico começa em Dezembro, quando as horas de luz crescem insensivelmente de novo até ao auge que é o São João. Temos diante de nós três meses de prados verdes, de flores, de colheitas, de areia quente nas praias, de cantos nas árvores, mas o movimento do céu prepara já o Inverno, como em pleno Inverno é o Verão que se prepara. Estamos metidos nesta dupla espiral que sobe e desce. (...)É só em nós, e mesmo assim sem grande esperança nem grande fé, que iremos encontrar a estabilidade.
A leitura de O tempo esse Grande Escultor foi muito semelhante à experiência de frequentar uma daquelas gelatarias todas pipi das grandes capitais onde um gelado nunca é só um gelado, mas um misto de sabores com nomes difÃceis de pronunciar, fruta fresca e frutos secos, biscoitos, molhos doces e salgados, pipocas, glacé etc etc, que tanto podem ser servidos num copo, num cone, numa taça XS a XL, ou como acompanhamento de uma série de outras sobremesas como profiteroles e cheesecakes de encher o olho. O problema é que a meio do gelado já saciámos o estômago (e as artérias) de tanto açúcar que acabamos por deixar na mesa ainda uma meia dúzia de euros em desperdÃcio. Esta coletânea é precisamente aquele gelado que não resistimos a cobrir com mil e um extras de cor e textura, mas que, a dada altura, enjoa. Isto para dizer que uma mão cheia destes textos se lêem como verdadeiras pérolas, mas uma coletânea deles se torna um desafio (a vários nÃveis: desde a necessidade de bagagem intelectual para acompanhar, à capacidade de descodificar o seu hermetismo linguÃstico). E isto é menos um insulto a Yourcenar do que a mim. Porque, e apesar da densidade da sua escrita, a autora discorre sem hesitação sobre filosofia, religião, história e arte (o que muita inveja me faz), e se há algo que aqui deixe a desejar é talvez essa mesma multiplicidade de temas que dispersa a coletânea exigindo do leitor conhecimentos e interesses tão diversificados como aqueles que respeitam ao orientalismo, a ética, a espiritualidade ou a ecologia. Mas esta coletânea é também, e em grande medida, um conjunto de textos autoapologéticos que procuram justificar muitas das opções históricas, literárias e de estilo tomadas pela autora na composição de obras como Memórias de Adriano (cuja leitura não me decido a iniciar) ou A obra ao negro (cuja leitura não me decido a terminar). Nesse sentido, talvez para um estudioso ou admirador da sua obra, façam mais sentido.
Pessoalmente, deliciei-me com a tradução escorreita de Maria Helena Vaz que faz com que fluam as páginas mais poéticas de Yourcenar, e com o primeiro destes textos A propósito de algumas linhas de Beda, o Venerável (particularmente interessante para aqueles que se afadigam a tentar recuperar conexões históricas).
Unidos, sem dúvida, pelo tema do tempo - tempo cÃclico e tempo-memória -, estes artigos, outrora dispersos, formam uma unidade algo atÃpica em que a vertente académica, a pessoal, a ativista e umas série de outras vertentes da autora se dão a conhecer - à s vezes de forma estranhamente crÃtica perante a qualidade do feminino (Yourcenar não consentia num feminismo de oposição, acreditando que adversar mulheres e homens é alimentar a compartimentação social que oprime as primeiras).
Tudo isto acaba por fazer de O tempo esse Grande Escultor uma coletânea informe - como a maioria das coletâneas - em que uns textos se destacam de outros em função da preferência ou competência do leitor. Ainda assim, e apesar das dificuldades em acompanhar a agilidade e as escolhas da autora, sou capaz de apreciar a tentativa em que Yourcenar intenta quando procura criar ligações concêntricas entre os vários temas. Esse, para mim, é o ponto alto deste livro.
(...)o Inverno astronómico começa em Junho, como o Verão astronómico começa em Dezembro, quando as horas de luz crescem insensivelmente de novo até ao auge que é o São João. Temos diante de nós três meses de prados verdes, de flores, de colheitas, de areia quente nas praias, de cantos nas árvores, mas o movimento do céu prepara já o Inverno, como em pleno Inverno é o Verão que se prepara. Estamos metidos nesta dupla espiral que sobe e desce. (...)É só em nós, e mesmo assim sem grande esperança nem grande fé, que iremos encontrar a estabilidade.
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O Tempo esse grande escultor.
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April 4, 2025
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April 4, 2025
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April 4, 2025
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lermaismulher
April 4, 2025
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25.93%
"Já não temos hoje, todos o sabemos, uma única estátua grega tal como a conheceram os seus contemporâneos: (...)vivas dessa intensidade quase assustadora de manequins e de Ãdolos que eram obras-primas, por acréscimo. Esses objectos duros trabalhados para imitar formas de vida orgânica sofreram, à sua maneira, o equivalente do cansaço, do envelhecimento, da desgraça. Mudaram como o tempo nos muda."
page
49
April 5, 2025
–
38.1%
"Pediram-me que colaborasse numa recolha intitulada AS ENFURECIDAS.
Não gosto do tÃtulo: posso estar de acordo com a indignação, q encontra nos nossos dias muitas ocasiões para se manifestar, mas não consigo aprovar a fúria, essa pequena explosão individual q desqualifica, esgota e nos cega.Também não gosto q esta recolha seja reservada apenas a mulheres escritoras. Não voltemos aos compartimentos para senhoras sós."
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72
Não gosto do tÃtulo: posso estar de acordo com a indignação, q encontra nos nossos dias muitas ocasiões para se manifestar, mas não consigo aprovar a fúria, essa pequena explosão individual q desqualifica, esgota e nos cega.Também não gosto q esta recolha seja reservada apenas a mulheres escritoras. Não voltemos aos compartimentos para senhoras sós."
April 6, 2025
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Paula
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Apr 06, 2025 10:17AM

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***Paula, não me ouves desse lado, mas isto sou eu a suspirar de resignação perante um Å·±¦ÓéÀÖ cruel...***
É isso. Está, realmente, num patamar que não alcanço, mas continuo sempre a tentar.
Gosto dos meus gelados cheios de migalhas e coisas desidratadas, e dos meus livros cheios de problemas difÃceis - depois há sempre qualquer coisa que fica por digerir ;D


David, I believe that sharing something in common with Yourcenar is a great thing! She was incredibly insightful.