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128 pages, Paperback
First published January 1, 2005
Compreender a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas que, desde o nascimento até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual.
Todo o impessoal em nós é genial; genial é, sobretudo, a força que move o sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo, a desconhecida potência que, em nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a tibieza e dissolve ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius que, obscuramente, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiológica, lá onde o mais próprio é o mais estranho e impessoal, o mais próximo é o mais remoto e indomável. Se não nos abadonássemos a Genius, se fôssemos apenas Eu e consciência, nunca poderíamos nem sequer urinar. Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento
A ideia de que o Reino esteja presente no tempo profano em formas míopes e distorcidas, de que os elementos do estado final se escondam precisamente no que hoje aparece como infame e escarnecido, de que, em suma, a vergonha tenha a ver secretamente com a glória, é um tema messiânico profundo. Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação é precisamente o companheiro que se perdeu pelo caminho. É seu rosto que reconheceremos no anjo que toca a trombeta ou em quem, distraído, deixar cair das mãos o livro da vida. A réstia de luz que nasce em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção. Ajudantes, nesse sentido, foram também o mau companheiro de escola que nos passou por baixo da carteira as primeiras fotografias pornográficas ou o sórdido quartinho onde alguém nos mostrou pela primeira vez a sua nudez. Os ajudantes são nossos desejos insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos, que no dia do juízo virão a nosso encontro sorrindo como Artur e Jeremias. Naquele dia, alguém descontará nossos rubores como letras de câmbio para o paraíso. Reinar não significa satisfazer. Significa que o insatisfeito é o que permanece.
Desejar é a coisa mais simples e humana que há. Por que, então, para nós são inconfessáveis precisamente nossos desejos, por que nos é tão difícil trazê-los à palavra? Tão difícil que acabamos mantendo-os escondidos, e construímos para eles, em algum lugar em nós, uma cripta, onde permanecem embalsamados, à espera.
Não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque os imaginamos. Na realidade, a cripta contém apenas imagens, como é o caso de um livro de figuras para crianças que ainda não sabem ler, o caso das images d’Epinal de um povo analfabeto. O corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos.
De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência.
Por essa razão, no Museu, a analogia entre capitalismo e religião se torna evidente. O Museu ocupa exatamente o espaço e a função em outro tempo reservados ao Templo como lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo � ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário � correspondem hoje os turistas, que viajam sem trégua num mundo estranhado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam, no final, de um sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrifical que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso. Se os cristãos eram “peregrinos�, ou seja, estrangeiros sobre a terra, porque sabiam que tinham no céu a sua pátria, os adeptos do novo culto capitalista não têm pátria alguma, porque residem na forma pura da separação. Aonde quer que vão, eles encontrarão, multiplicada e elevada ao extremo, a própria impossibilidade de habitar, que haviam conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a própria incapacidade de usar, que haviam experi-mentado nos supermercados, nos shopping centers e nos espetáculos televisivos. Por isso, enquanto representa o culto e o altar central da religião capitalista, o turismo é atualmente a primeira indústria do mundo, que atinge anualmente mais de 650 milhões de homens. E nada é mais impressionante do que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo uso, a absoluta impossibilidade de profanar.